Godofredo
Acho que foi por volta de 84 ou 85 que eu e meu irmão tivemos nosso primeiro contato com o Godofredo, um vira-lata preto de pêlo bem ralo que passou a morar na casa dos meus tios-avós lá em Guararapes, uma cidadezinha que fica um pouquinho depois da casa do chapéu e bem depois do Rodoserv indo pela Marechal Rondon, e que foi o destino turístico de 90% das nossas férias escolares.
Naquela época eu ainda não sabia que a festinha frenética que ele fazia pra gente toda vez que meu pai embicava o Monza portão da casa da tia Janete não era exclusividade nossa, e que cachorros saudáveis costumam despirocar ao menor sinal da aproximação de qualquer tipo de visita. Mas ali, naquele momento, quando a gente chegava aliviado e de saco cheio depois de horas intermináveis de estrada, aquilo era tipo uma recepção de chefe de estado: lambidas, mordidinhas, mais lambidas, latidos, pulos altíssimos, muita baba e uma disposição inimaginável pra mostrar que a gente era bem vindo. Que a gente era especial.
Lembro de uma vez que chegamos no meio da madrugada e lá tava ele, todo putão, pêlo da cor da noite e já meio que pedindo um banho de mangueira, recebendo a gente, abrindo o caminho, supervisionando o quarto de hóspedes pra ver se tava tudo no jeito, latindo loucamente - e eventualmente pedindo uma salsicha. Crua mesmo, do jeito que a Augusta guardava na geladeira. Que o Godô não era bobo, e sabia que tinha salsicha na geladeira, e que a gente sabia também.
E é claro que o Godô comia salsicha. E arroz, feijão, macarrão, churrasco, esfiha, tabule, quibe cru - algumas das várias especialidades libanesas da tia Janete. “Cachorro saudável come de tudo” era o mantra de 1988, a campanha da fraternidade de 1991. E quem negava uma costelinha pro Godofredo num dos muitos churrascos pilotados pelos lordes espanhóis do ovo caipira do noroeste paulista?
O Godô era rueiro. Vira-lata clássico. Como, aliás, cachorros são até hoje em cidades do interior, quebradas, vilas e basicamente qualquer lugar que não seja a zona sul ou a zona oeste de São Paulo, o Leblon ou o espaço de convivência multidisciplinar da Zee-dog na Oscar Freire. E nessas ele andava pela cidade inteira - o que não chega a impressionar numa cidade que não bate 30 mil habitantes, mas vai vendo, ele ia até a escola onde a tia Janete dava aula, era devidamente saudado pela molecadinha, que conhecia pelo nome:
“Olha lá o Godô!”
Acho inclusive que ele marcava mais presença nas aulas que muito primo meu ali.
Mas isso não era exclusividade da escola. Do gerente do Banco do Brasil aos amigos do tio Alzimar e do Lacerda, todos de chapéu nos bancos da praça - aqueles que tinham patrocínios de armarinhos e sapatarias pintados no granilite -, todo mundo saudava o Godofredo. Que andava de rabo empinado pela cidade, confiança de um maloqueiro nato, e só voltava pra casa quando bem entendia. Ou quando a fome batia.
Quando eu saía com a barra forte cor de vinho do Du (que já era velha na época) pra ir até a banca da rodoviária o Godô corria atrás a milhão, ia até onde dava, até onde aguentava. Invariavelmente chegava quando eu já tava ali, fechando um combo Placar-Ação Games-Playboy-Almanaque de férias do Cascão pra garantir o lazer pros próximos dez dias. Ou trinta. E voltava no mesmo ritmo, lado a lado com a bike, sorrindo com a língua pra fora.
Talvez já pensando na salsicha.
O Godô não era meu cachorro. Mas foi meu primeiro cachorro. E até por isso, talvez em respeito a essa convivência e a esses tempos, essas tardes infanto-juvenis vividas ao lado dele, só fui ter cachorro com quase 40. E meio que sem querer. Um vira-lata que usa coleira da Zee-dog, come ração premier e dorme em caminha com espuminha da Nasa. Fidivó total.
E que lembra pra caralho o Godô.
O Godô morreu todo fudido, com diabetes, perdeu um olho, história triste, um monte de limitação. Foi sacrificado. Um termo que se pá nem se usa mais. Cancelaram o sacrifício. Mas nessa época eu já não ia tanto pra Guararapes, e não vivi esse processo.
Nunca vou entender porque essas ferinhas vivem tão pouco. Deve ser porque a gente não merece eles. Acho que é isso.
Só pode ser.